Em “Alias Grace”, adaptação da
Netflix do livro homônimo de Margaret Atwood, a personagem Grace Marks,
sentenciada à prisão perpétua por ter assassinado seu patrão e a governanta da
casa em que trabalhava, reflete que é melhor ser uma assassina do que um
assassino. Segundo ela, a primeira palavra aguça a curiosidade, enquanto a
segunda nos faz pensar em um machado em movimento e sangue derramado pelo chão.
Tanto a minissérie roteirizada
por Sarah Polley e dirigida por Mary Harron, quanto o livro de Margaret Atwood,
apresenta o caso de homicídio duplo que chocou o Canadá em 1843. Pouco se sabe
sobre a Grace Marks real, mas “Alias Grace” parte dessa personagem para
tensionar o que entendemos como feminilidade e assassinato. Isso nos faz pensar sobre como o nosso olhar pode
ser facilmente manipulado.
A curiosidade perante uma
assassina mulher é tão diferente porque matar não parece ser algo muito
feminino. A opressão de gênero que tanto aprisiona mulheres, incluindo as
homicidas, parece nesses casos um disfarce perfeito e um provável fator que
coloca certas vítimas como alvo delas.
Lady Killers, livro de Tori
Telfer, dedica-se a trabalhar essa curiosidade por meio de pesquisa sobre
mulheres que mataram mais de uma vez, mais de uma pessoa, em mais de um
momento. Elas são as assassinas em série que pouco ouvimos falar ou que se
tornaram personagens macabras, que tiveram suas histórias contadas como uma
fantasia aterrorizante de luxúria e vaidade, como Elizabeth Báthory, a condessa
sangrenta.
Quando a expressão “assassinos
em série” aparece em uma leitura ou mesmo em um caso, a gente pensa em homens
como agressores e mulheres como vítimas. Tirar a vida de alguém é um exercício
de um poder absoluto que nossa cultura não consegue ver como algo que mulheres
podem fazer. Isso colabora para que as seriais killers atuem por mais tempo e
façam mais vítimas, já que não são vistas como suspeitas.
A curiosidade guia nossos
olhares em ambos os gêneros. Há um estranhamento quando uma mulher é capaz de
um ato tão vil como tirar a vida de muitos, apesar de estarmos inseridos numa
cultura repleta de histórias lotadas de vilãs, bruxas más e madrastas cruéis. A
vilania feminina para nós é ligada, principalmente, ao comportamento esperado
das mulheres. O pressuposto de que mulheres devem ser recatadas, cuidadoras,
mães dedicadas prevalece no imaginário social. As vilãs das histórias têm o
efeito de mostrar quem não podemos
ser, como não devemos agir. Quando a
vilania feminina aparece na vida real no formato de seriais killers, o efeito
que elas causam é tão incômodo, destoa tanto do ideal de mulher, que há um
esforço coletivo e espontâneo de tratá-las como menos letais.
Tori Telfer destaca isso muito
bem quando aborda o comportamento da mídia e da sociedade perante as assassinas
pesquisadas. Nannie Doss, por exemplo, que confessou ter matado quatro maridos
envenenados, mas também foi acusada de matar outros familiares, incluindo
crianças, foi tratada como uma mulher em busca do amor. Como se isso amenizasse
o horror dos atos cometidos por ela. Nannie se tornou uma espécie de paródia de
uma dona de casa romântica que deu muito errado por caber tão bem no ideal de feminilidade
da época.
As histórias das seriais
killers são contadas pela autora de uma forma que evidencia a diferença de
tratamento social, especialmente punitivo, entre elas. A classe sempre pesa
muito, mas não só. Tillie Klimek, por exemplo, não teve a chance de escapar da
prisão ou ter sua pena amenizada, como acontecia bastante em Chicago na época,
por não ser considerada uma personagem atraente. Sim, a beleza, esse atributo
colocado como tão importante para as mulheres, afeta até mesmo a maneira que olhamos
para suspeitas de assassinato. É por causa do que é dito como feminino que
tantas citadas nessa obra escaparam da pena de morte simplesmente por serem
mulheres.
A pesquisa de Tori Telfer
expõe como as visões estereotipadas torna assassinas personagens muitas vezes
romantizadas, outras sem visibilidade. Elas existem, mas suas ações ainda são
colocadas como algo fantástico, fora da curva. Mas será mesmo que seriais
killers são tão raras assim ou elas escapam mais facilmente por agirem dentro
do espaço colocado como feminino, o privado, e por estarem acima de qualquer
suspeita?
Talvez, nossa cultura, ao
ligar mulheres à vida, ao cuidado, ao amor, à ingenuidade, nos faça esquecer
que a violência e a crueldade são, acima de tudo, uma questão humana. Sabemos
muito bem como a masculinidade patriarcal molda homens para buscarem a
dominância e violência, mas é uma surpresa conhecer histórias que mostram que
mulheres também podem ter um lado sombrio e cruel, mesmo sendo condicionadas a
se comportarem de modo oposto.
A edição brasileira do livro,
feita pela DarkSide, conta com uma pesquisa extra que nos apresenta mais 14
seriais killers, incluindo nomes famosos como a da mulher que inspirou o filme
Monster e a famosa história da Viúva Negra.
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