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sexta-feira, 14 de junho de 2019

Dumplin’: Gordofobia e autoaceitação no longa da Netflix


Depois de ser acusada de gordofobia pela questionável abordagem do tema em sua série original Insatiable, o Netflix lançou em fevereiro Dumplin’, nova aposta do serviço de streaming para tratar sobre autoaceitação e autoimagem.
Baseada no livro homônimo de Julie Murphy narra a história da jovem Willowdean Dickson (Danielle MacDonald), uma garota fora dos padrões que cresceu escutando e tendo como sua grande referência a cantora Dolly Parton. Tal herança foi deixada pela falecida tia Lucy (Hilliary Begley), sua grande figura materna. Diferente dela que sempre a incentivou, sua mãe, Rosie (Jennifer Aniston), por ser uma prestigiada ex-miss e vive em uma realidade diferente, nunca conseguiu criar uma verdadeira ligação com a filha. Como forma de protesto, a menina decide se inscrever no concurso de beleza da cidade - o mesmo que Rosie ganhou décadas atrás.
O forte de Dumplin’ não está em sua fórmula. Repleto de clichês, o filme narra a história do desabrochar de uma jovem no fim de sua adolescência, com todas as inseguranças e tribulações que acompanham essa fase da vida. As reviravoltas do filme são previsíveis e regadas ao som de Dolly Parton, musa e inspiração de Will, ao lado de sua tia Lucy.
O grande diferencial do filme está na maneira como a fórmula é utilizada. Em Dumplin’ os papéis são invertidos, e os holofotes são voltados para uma protagonista gorda, enquanto sua melhor amiga (Odeya Rush) categorizada pelos padrões estéticos como beldade ocupa uma posição coadjuvante. É este revigorante novo olhar que torna os clichês suportáveis e faz o filme valer a pena ser assistido.
Neste ponto, o longa cumpre o papel prometido por Insatiable, sem insurgir nos mesmos erros. De uma forma leve e delicada, o filme retrata o empoderamento de uma adolescente que percebe que não precisa emagrecer para ganhar confiança, ou conquistar o rapaz de seus sonhos. Will não espera (nem deseja) emagrecer para participar de um concurso de beleza. Mesmo gorda, a jovem compreende que possui o mesmo direito de fazer parte de um concurso de miss que aquelas que se encaixam perfeitamente nos opressores padrões estéticos atuais.
Will olha para sua mãe Rosie em Dumplin'
 O principal obstáculo a ser superado por Will está na relação da jovem com sua mãe. O título do filme corresponde ao apelido que Rosie atribuiu à sua própria filha: bolinho. Mesmo que tivesse a melhor das intenções, Rosie escolheu apelidar sua filha com uma palavra que servia como crítica à imagem de Will. Ainda que no subconsciente, Rosie rejeitava a ideia de ter uma filha gorda.
Inicialmente, se a utilização da palavra “gorda” causou estranheza ao longo deste texto, é indispensável que seja entendido: essa não há conotação negativa na mera utilização de uma palavra descritiva, que significa apenas o antônimo de “magro”. Ser gordo ou magro, assim como ser alto ou baixo, é apenas uma característica física. São, portanto, constatações, que não deveriam servir como meios para denegrir alguém.
O problema reside quando se utilizam adjetivos ofensivos que foram associados à gordura ao longo dos anos. O xingamento não é chamar de gordo, mas consiste nos estereótipos usualmente relacionados a esta característica física.
Em Dumplin’, Rosie achava sua filha gorda, e por isso lhe deu o apelido de bolinho. Mas se Will realmente é gorda e essa é uma palavra que indica apenas uma característica física, qual é o problema?
A questão é que Rosie acreditava que sua filha podia menos por ser gorda. Reduzir todos os atributos de Will ao apelido de bolinho é limitar as qualidades da jovem exclusivamente ao seu peso. A escolha da profissão de Rosie, muito atrelada à noção de futilidade, serviu para que não restassem dúvidas de que a ex-miss se envergonhava de ter uma filha fora dos padrões estéticos.
Quando Will demonstrou interesse em participar do concurso de beleza organizado por sua mãe, Rosie ficou furiosa e acreditou se tratar de uma piada da filha. Afinal, como pode uma jovem gorda possuir genuíno interesse em um concurso de miss? Esta é uma presunção cruel. Acreditar que a única motivação de uma pessoa gorda para participar de um concurso de beleza é zombar do sistema, é o mesmo que dizer que é inconcebível que alguém gordo se ache belo.
E é neste ponto que o filme acerta com a personagem Millie (Maddie Baillio). Diferente de Will, que decide participar do Miss Teen Bluebonnet como uma forma de protesto, Millie sempre sonhou em fazer parte dos concursos de beleza. Entretanto, nunca teve coragem, por receio do bullying que poderia sofrer. Quando Will e outras meninas fora dos padrões estéticos ingressam no concurso, a representatividade lhe dá forças para viver o seu sonho. Millie é a verdadeira heroína do filme, pois nunca viu seu peso como empecilho para conquistar seus objetivos.
Autoaceitação x conformismo
No início de Dumplin’, Will aparenta ser uma jovem confiante, que não se deixa abalar pela pressão estética de ser fora dos padrões. Ela é extrovertida, divertida, inteligente, e extremamente competente em seu trabalho.
Neste ponto, o filme reforça a importância da representatividade e acolhimento no desenvolvimento da criança e do adolescente. Will cresceu com um referencial de alguém que ela muito admirava e que também se encontrava fora dos padrões de beleza: sua tia Lucy. Em vez de uma infância opressora por estar acima do peso socialmente aceito, Will se sentia acolhida e compreendida por Lucy. Sua tia lhe ensinou que seu peso não a definia, e com ela aprendeu sobre autoestima e amor próprio. Mas toda a segurança de Will começa a ruir ao descobrir que Bo (Luke Benward), um popular garoto com quem ela trabalha na lanchonete, está apaixonado por ela.
A partir daí, compreendemos que a autoaceitação de Will se confunde com conformismo. Will é consciente de seu corpo, e aparenta acolhê-lo. Mas com ele, aceita também a posição social que acredita merecer por estar fora dos padrões. Ela acredita ser a amiga gorda de Ellen, e se acostumou com o fato de suas outras colegas sequer notarem sua existência. Ela não consegue conceber o fato de Bo, um rapaz que considera atraente, estar interessado nela, e não na aspirante a miss Bekah (Dove Cameron), que o convida para sair. Afinal, na ordem natural das coisas, garotos como ele não namoram garotas como ela.
Há algo perverso nessa mensagem. Will não necessariamente se amava, mas havia se conformado ao longo dos anos em ser quem ela era.
Neste momento, Dumplin’ volta a destacar a importância da representatividade na relação entre Will e Millie. De uma forma, uma amiga inspira e ensina a outras noções de amor próprio e autoaceitação. Se num primeiro instante Will serviu de inspiração para Millie entrar no concurso, no final do longa é a vitória de Millie que demonstra a Will que corpos gordos também podem ser considerados belos pela sociedade. Então, talvez Bo realmente a enxergasse com uma jovem bonita. E talvez o lugar dela pudesse ser ao lado de alguém que ela considerasse bonito também.
Dirigido por Anne Fletcher, Dumplin’ é a versão repaginada da clichê história sobre o desabrochar e amadurecimento feminino. Mas é o enfoque do filme que o faz funcionar apesar da fórmula já batida. Ultrapassado o lugar-comum, a mensagem que fica é a de que todos os corpos merecem seu lugar ao sol – e na passarela.

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