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sexta-feira, 14 de junho de 2019

Abuso não é amor: devemos parar de romantizar relacionamentos tóxicos


Caso você não esteja habituada com o significado de relacionamento tóxico na cultura pop, talvez você deva ouvir a música do grupo The Police, Every breath you take, que bombou nas paradas de sucesso em 1998.
“A cada suspiro que você der. A cada movimento que você fizer. A cada elo que você quebrar. A cada passo que você der. Eu estarei te observando. A cada dia. A cada palavra que você falar. A cada jogo que você jogar. A cada noite que você ficar. Eu estarei te observando. Oh você não vê. Que você pertence a mim?” — The Police, “Every breath you take”.
            Agora, reflita por um momento: nos últimos anos, quantos relacionamentos abusivos travestidos de romance você acompanhou na cultura pop? De músicas, filmes e livros, a maior parte das produções que consumimos contam histórias sobre belos relacionamentos românticos – até não serem mais.
É impossível não lembrar do excitamento causado pela saga Crepúsculo. Todas ficaram extremamente empolgadas com o romance sobrenatural. Mas é preciso entender que Edward Cullen, o mocinho, o cavaleiro de armadura brilhante e com presas de vampiro, era um perseguidor. O livro, que mais tarde se tornou filme, conta a história de Bella Swan (Kristen Stewart), uma adolescente sem grandes ambições ou características marcantes, mas que cai no radar do vampiro Edward Cullen (Robert Pattinson), dando início ao relacionamento bizarro entre uma humana adolescente e um ser sobrenatural com mais de cem anos de idade.
Utilizando-se do amor como desculpa para seu comportamento inadequado, Edward passa a entrar no quarto de Bella enquanto ela dorme apenas para observá-la, a segue pela cidade e aparece sem ser convidado nos lugares que a amada frequenta apenas para ter certeza de que está tudo bem com ela. Seu comportamento é obsessivo e possessivo, sem contar a quantidade de vezes em que Edward diz, sem meias palavras, que sente um desejo incontrolável pelo sangue da garota.
Outro exemplo de relacionamento abusivo fantasiado de romance – e que não poderia ter surgido de outra inspiração senão Crepúsculo – é a trilogia 50 Tons de Cinza. Inspirando-se nos personagens de Stephenie Meyer, E.L. James criou a “história de amor” entre a jovem, virgem e inexperiente Anastasia Steele (Dakota Johson), e o rico, maduro e experiente Christian Grey (Jamie Dornan).
Assim como ocorre em Crepúsculo, Christian sente uma fascinação inexplicável por Ana e passa a persegui-la e assediá-la até que a moça ceda e inicie um relacionamento com ele. Também vendido como um romance, só que desta vez erótico e com toda a mitologia do bondage para atiçar a curiosidade do grande público, o que acompanhamos em 50 Tons de Cinza é, novamente, um relacionamento abusivo. Utilizando-se de sua experiência, Christian manipula psicologicamente, agride Anastasia enquanto os leitores ao redor do mundo acreditam estar acompanhando nada mais do que uma bela história de amor.
A lista de relacionamentos abusivos glorificados pela cultura pop é gigantesca: Chuck Bass (Ed Westwick) e Blair Waldorf (Leighton Meester), em Gossip Girl foram um dos casais mais amados por aqueles que acompanharam o seriado. Porém, assim como os exemplos já citados nesse mesmo texto, o relacionamento que o casal desenvolve é abusivo e tóxico. Em Diário de Uma Paixão, originalmente um livro de Nicholas Sparks, Noah Calhoun (Ryan Gosling) coage Allie Hamilton (Rachel McAdams) a sair com ele, caso contrário ele se mataria. Danny Zuko (John Travolta) se preocupa mais com sua reputação do que com a garota que “ama”, o que termina com Sandy Olsson (Olivia Newton-John) mudando completamente sua maneira de ser em nome do relacionamento dos dois em Grease – Nos Tempos da Brilhantina.
Todos esses exemplos vieram de histórias fictícias, de livros e filmes, de personagens inventados, porém a mensagem que recebemos dessas mídias influencia a maneira como pensamos e sentimos em nossos próprios relacionamentos. Romantizar relações tóxicas onde abuso é vendido como amor impacta diretamente na vida e entendimento de quem consome cultura pop. Pode soar exagerado dizer que aquilo que consumimos em nossos momentos de diversão pode repercutir diretamente em nossas escolhas pessoais, mas somos muito influenciados por aquilo que assistimos ou lemos, por aquilo que é popular nas mídias sociais.
Não é de hoje que a cultura pop trata relacionamentos abusivos como romance e isso apenas perpetua a ideia de que é normal e corriqueiro se ver em uma relação desse tipo. Embora seja impossível controlar a forma com a qual as pessoas interpretam aquilo que consomem, a indústria do entretenimento segue, sim, responsável por aquilo que nos vende. A cultura pop tem a habilidade não apenas de mudar sua preferência pessoal por música ou moda, mas nosso entendimento do que é normal ou aceitável em nossas vidas.
Abuso, de qualquer tipo, não é algo a ser romantizado ou fetichizado. De acordo com a ONG Livre de Abuso, os números deixam claro que as mulheres, principalmente jovens entre 16 e 24, são as maiores vítimas dos relacionamentos abusivos. Ainda com dados da ONG, no Brasil, mais da metade dos homens de todas as classes sociais já cometeu algum tipo de agressão contra uma parceira, o que explica o fato de que 84% das jovens mulheres brasileiras já tenham sofrido agressão verbal de um homem.
Mas como podemos nos surpreender por tais estatísticas quando livros, filmes e seriados de sucesso continuam a glorificar relacionamentos abusivos? Sinais de relacionamentos abusivos – que incluem violência sexual, física, verbal e psicológica, entre outros – são difíceis de serem detectados em situações reais, principalmente quando seus personagens favoritos passam as mesmas coisas, que são encaradas como normais. A realidade é que, diferente do que muitos filmes e livros tentam nos vender, abusadores não se transformam em príncipes encantados por meio da força do amor. Está nas mãos dos produtores, diretores e roteiristas mudarem a maneira como tais relacionamentos são retratados, transformando-os em amostras do que é realidade.
Da mesma maneira que dizemos que representatividade importa, um retrato fiel de relacionamentos abusivos também pode ajudar pessoas que se encontram em tal situação, mas não se dão conta disso, a perceberem que estão presas em um convívio tóxico.

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