Depois de ser acusada de
gordofobia pela questionável abordagem do tema em sua série original Insatiable, o Netflix lançou em
fevereiro Dumplin’, nova aposta do serviço de streaming para tratar sobre
autoaceitação e autoimagem.
Baseada no livro homônimo de
Julie Murphy narra a história da jovem Willowdean Dickson (Danielle MacDonald),
uma garota fora dos padrões que cresceu escutando e tendo como sua grande
referência a cantora Dolly Parton. Tal herança foi deixada pela falecida tia
Lucy (Hilliary Begley), sua grande figura materna. Diferente dela que sempre a
incentivou, sua mãe, Rosie (Jennifer Aniston), por ser uma prestigiada ex-miss
e vive em uma realidade diferente, nunca conseguiu criar uma verdadeira ligação
com a filha. Como forma de protesto, a menina decide se inscrever no concurso
de beleza da cidade - o mesmo que Rosie ganhou décadas atrás.
O forte de Dumplin’ não está
em sua fórmula. Repleto de clichês, o filme narra a história do desabrochar de
uma jovem no fim de sua adolescência, com todas as inseguranças e tribulações
que acompanham essa fase da vida. As reviravoltas do filme são previsíveis e
regadas ao som de Dolly Parton, musa e inspiração de Will, ao lado de sua tia
Lucy.
O grande diferencial do filme
está na maneira como a fórmula é utilizada. Em Dumplin’ os papéis são
invertidos, e os holofotes são voltados para uma protagonista gorda, enquanto
sua melhor amiga (Odeya Rush) categorizada pelos padrões estéticos como beldade
ocupa uma posição coadjuvante. É este revigorante novo olhar que torna os
clichês suportáveis e faz o filme valer a pena ser assistido.
Neste ponto, o longa cumpre o
papel prometido por Insatiable, sem
insurgir nos mesmos erros. De uma forma leve e delicada, o filme retrata o
empoderamento de uma adolescente que percebe que não precisa emagrecer para
ganhar confiança, ou conquistar o rapaz de seus sonhos. Will não espera (nem
deseja) emagrecer para participar de um concurso de beleza. Mesmo gorda, a
jovem compreende que possui o mesmo direito de fazer parte de um concurso de
miss que aquelas que se encaixam perfeitamente nos opressores padrões estéticos
atuais.
Will
olha para sua mãe Rosie em Dumplin'
O principal obstáculo a ser superado por Will
está na relação da jovem com sua mãe. O título do filme corresponde ao apelido
que Rosie atribuiu à sua própria filha: bolinho. Mesmo que tivesse a melhor das
intenções, Rosie escolheu apelidar sua filha com uma palavra que servia como
crítica à imagem de Will. Ainda que no subconsciente, Rosie rejeitava a ideia
de ter uma filha gorda.
Inicialmente, se a utilização
da palavra “gorda” causou estranheza ao longo deste texto, é indispensável que
seja entendido: essa não há conotação negativa na mera utilização de uma
palavra descritiva, que significa apenas o antônimo de “magro”. Ser gordo ou
magro, assim como ser alto ou baixo, é apenas uma característica física. São,
portanto, constatações, que não deveriam servir como meios para denegrir
alguém.
O problema reside quando se
utilizam adjetivos ofensivos que foram associados à gordura ao longo dos anos.
O xingamento não é chamar de gordo, mas consiste nos estereótipos usualmente
relacionados a esta característica física.
Em Dumplin’, Rosie achava sua
filha gorda, e por isso lhe deu o apelido de bolinho. Mas se Will realmente é
gorda e essa é uma palavra que indica apenas uma característica física, qual é
o problema?
A questão é que Rosie
acreditava que sua filha podia menos por ser gorda. Reduzir todos os atributos
de Will ao apelido de bolinho é limitar as qualidades da jovem exclusivamente
ao seu peso. A escolha da profissão de Rosie, muito atrelada à noção de
futilidade, serviu para que não restassem dúvidas de que a ex-miss se
envergonhava de ter uma filha fora dos padrões estéticos.
Quando Will demonstrou
interesse em participar do concurso de beleza organizado por sua mãe, Rosie
ficou furiosa e acreditou se tratar de uma piada da filha. Afinal, como pode
uma jovem gorda possuir genuíno interesse em um concurso de miss? Esta é uma presunção cruel. Acreditar que a única motivação de uma pessoa gorda para participar de um concurso de
beleza é zombar do sistema, é o mesmo que dizer que é inconcebível que alguém
gordo se ache belo.
E é neste ponto que o filme
acerta com a personagem Millie (Maddie Baillio). Diferente de Will, que decide
participar do Miss Teen Bluebonnet como uma forma de protesto, Millie sempre
sonhou em fazer parte dos concursos de beleza. Entretanto, nunca teve coragem,
por receio do bullying que poderia sofrer. Quando Will e outras meninas fora
dos padrões estéticos ingressam no concurso, a representatividade lhe dá forças
para viver o seu sonho. Millie é a verdadeira heroína do filme, pois nunca viu
seu peso como empecilho para conquistar seus objetivos.
Autoaceitação
x conformismo
No início de Dumplin’, Will
aparenta ser uma jovem confiante, que não se deixa abalar pela pressão estética
de ser fora dos padrões. Ela é extrovertida, divertida, inteligente, e
extremamente competente em seu trabalho.
Neste ponto, o filme reforça a
importância da representatividade e acolhimento no desenvolvimento da criança e
do adolescente. Will cresceu com um referencial de alguém que ela muito
admirava e que também se encontrava fora dos padrões de beleza: sua tia Lucy.
Em vez de uma infância opressora por estar acima do peso socialmente aceito,
Will se sentia acolhida e compreendida por Lucy. Sua tia lhe ensinou que seu
peso não a definia, e com ela aprendeu sobre autoestima e amor próprio. Mas
toda a segurança de Will começa a ruir ao descobrir que Bo (Luke Benward), um
popular garoto com quem ela trabalha na lanchonete, está apaixonado por ela.
A partir daí, compreendemos
que a autoaceitação de Will se confunde com conformismo. Will é consciente de
seu corpo, e aparenta acolhê-lo. Mas com ele, aceita também a posição social
que acredita merecer por estar fora dos padrões. Ela acredita ser a amiga gorda
de Ellen, e se acostumou com o fato de suas outras colegas sequer notarem sua
existência. Ela não consegue conceber o fato de Bo, um rapaz que considera
atraente, estar interessado nela, e não na aspirante a miss Bekah (Dove
Cameron), que o convida para sair. Afinal, na ordem natural das coisas, garotos
como ele não namoram garotas como ela.
Há algo perverso nessa
mensagem. Will não necessariamente se amava, mas havia se conformado ao longo
dos anos em ser quem ela era.
Neste momento, Dumplin’ volta
a destacar a importância da representatividade na relação entre Will e Millie.
De uma forma, uma amiga inspira e ensina a outras noções de amor próprio e
autoaceitação. Se num primeiro instante Will serviu de inspiração para Millie
entrar no concurso, no final do longa é a vitória de Millie que demonstra a
Will que corpos gordos também podem ser considerados belos pela sociedade.
Então, talvez Bo realmente a enxergasse com uma jovem bonita. E talvez o lugar
dela pudesse ser ao lado de alguém que ela considerasse bonito também.
Dirigido por Anne Fletcher,
Dumplin’ é a versão repaginada da clichê história sobre o desabrochar e
amadurecimento feminino. Mas é o enfoque do filme que o faz funcionar apesar da
fórmula já batida. Ultrapassado o lugar-comum, a mensagem que fica é a de que
todos os corpos merecem seu lugar ao sol – e na passarela.